Tenho culpa?
Adilson Klier Péres Junior
Publicado em: 15/07/2002
Companheira inseparável das mazelas humanas desde que o homem convive socialmente, ela, a CULPA é parte integrante do crescimento de qualquer indivíduo, e velha conhecida de qualquer psicoterapeuta.
A questão do “por que sentimos culpa” não se deve exclusivamente à pessoa que sofre com ela. A culpa é uma questão de relação entre indivíduos, que transcende qualquer tipo de análise que possa ser focada unicamente na pessoa que a sente.
Gostaria de abordar neste texto as condições envolvidas para o aparecimento da culpa e como ela se mantém no comportamento dos indivíduos ao longo de suas vidas. Talvez o mais difundido comportamento social da espécie humana seja a punição. Punimos porque estamos zangados com uma pessoa, punimos a mesma pessoa porque estamos zangados com outra, punimos porque amamos alguém e isso é para o bem dessa pessoa. Punimos abertamente, punimos nas entrelinhas com palavras, entonação, olhares, e punimos aquilo que as pessoas fazem em proveito próprio, mas que nos prejudica de alguma forma. Punimos dando e retirando nosso afeto.
Talvez o afeto dos outros seja a forma de interação social mais desejada. Buscamos o afeto agradando ao outro, fazendo o que o outro gosta, sendo bem-sucedido, cuidando da aparência, e, sobretudo, não procurando desagradar ninguém que nos seja importante.
Afeto e punição: é deles a culpa.
Quando era pequeno, gostava que minha mãe fosse amável comigo, me desse carinho e atenção. Eu fazia muitas coisas para conseguir isso.
Eu não era muito bem-sucedido sempre.
Quando era, me davam afeto e carinho.
Quando não era, eu recebia uma palmada e era deixado por um tempo sem o carinho e afeto que tanto desejava.
Diziam-me algumas coisas que, na época, não compreendia bem:
“Menino feio, não pode fazer isso, por sua culpa mamãe agora tá brava”
etc.
Tal cena não é tão incomum de se ver por aí. E não tem nada de mais as mães quererem controlar o comportamento de seus filhos. Afinal, elas estão aí para isso. E a punição é o modo mais comum e disponível de se fazer isso.
Culpa delas, não…
Mas isso tem algumas conseqüências divertidas sobre o nosso comportamento.
Uma pequena história:
Quando fiquei um pouco mais velho e cheio de vontades, aprendi a não deixar de fazer as coisas que queria, como também continuei gostando desse vício que é ser gostado por outros.
Mas duas coisas me aconteceram: comecei a gostar muito de doces.
Eu passei a compreender o que as pessoas falavam.
A conseqüência dos doces foram quilinhos a mais, que tanto preocuparam minha mãe e o meu médico.
O efeito de compreender o que os outros falavam pode ser vista abaixo:
Um dia, após muito tempo de regime e controle do meu peso, soube que minha tia havia deixado um pote cheinho de Biscoitos Chocolate Chips Cookies em um recipiente com a cara do Mickey mouse na cozinha da minha casa.
Estranhamente, durante três dias, a cozinha me pareceu um lugar mais atrativo do que já era.
No fim do terceiro dia, então resolvi dar uma conferida no pote com a cara do Ratinho americano só pra ver o que tinha dentro.
Estranhamente, na hora não havia ninguém em casa também.
Ao abrir o recipiente, fui atacado por um aroma delicioso de baunilha, que me deixou muito feliz. Ao aproximar o nariz, senti então outro aroma dos deuses, que foi o das pequenas e semiderretidas gotas de chocolate, que parecia passar do meu nariz e atacar diretamente alguma glândula obscura do meu cérebro.
COMI!
Talvez a mais sublime elação sentida na minha vida foi aquela dentada na massa macia e saborosa daquele biscoito. Possivelmente exibi um sorriso digno de um livro de recordes.
MENINO!!!!!! O QUE ESTÁ FAZENDO?
Olhando para o lado, vejo, nada mais, nada menos, que minha progenitora a me fitar com uma cara que me lembrou instantaneamente a cara que tantas vezes fez depois de me dar uma palmada quando era menor. Podia quase sentir meu traseiro latejando no momento.
Oi, mãe………..er……… você por aqui? (falando e cuspindo farelos, meu sorriso agora era mais amarelo do que uma camisa da seleção).
EU NÃO ACREDITO NISSO!
EU ME MATO PARA TE AJUDAR,
PERCO MEU SONO DE PREOCUPAÇÃO COM A TUA SAÚDE
E MEU DINHEIRO PRA TE LEVAR NO MÉDICO.
A CULPA É SUA SE VOCÊ ENGORDAR TUDO DE NOVO E VOLTAR A TER PROBLEMAS…
VOCÊ NÃO TEM JEITO MESMO.
Eu poderia ter dormido melhor na minha vida se ficasse sem compreender o que os outros dizem.
Mas, traduzindo o que minha mãe disse na hora, soaria mais ou menos assim, nos ouvidos do menino:
Se ela se mata para me ajudar, significa que o que eu fiz (comer biscoito) a prejudicou também. Seu esforço em me ajudar foi em vão.
Se ela perde o sono, significa que minha saúde a está deixando mal e preocupada.
Se ela perde dinheiro, significa que por minha culpa não vou ganhar presente de Natal.
Devido à minha pessoa, que come doces, minha mãe sofre, e eu vou sofrer também.
Tudo isso significa que é bem provável que agora minha mãe goste menos de mim.
E, de repente, me lembro dos tempos em que perdia o afeto dela.
Junto a isso ocorrem pensamentos de que é tudo por minha causa, eu realmente não tenho jeito. Sou fadado a sempre não ter o que eu gosto e, se eu tiver o que eu gosto, eu perco outras coisas também. Como o tão necessário afeto da minha mãe.
Em suma, eu não tenho jeito mesmo. Sou CULPADO por minha ruína.
– Mãezinha?
– Sim, filhinho?
– Você ainda gosta de mim?
– Gosto sim… Mas só se você parar de comer.
O texto acima é ilustrativo do mecanismo básico do processo de ocorrência da culpa.
Uma pessoa quer ter acesso a certas coisas boas do mundo, tais como comida, afeto, liberdade de agir, etc.
Essas coisas são mediadas por pessoas relacionando-se em comunidades ou instituições: família, Igreja, trabalho.
Muitas vezes, o que é recompensa para um indivíduo não é agradável a outros indivíduos que estão envolvidos na sua obtenção. Logo, surgem sanções AO INDIVÍDUO. Por exemplo, uma pessoa que fuma tem seu prazer com o fumo. Mas, para seu cônjuge, pode ser aversivo, visto que o cigarro pode matar a pessoa que se ama. Uma pessoa tem prazer em relações homossexuais, mas isso é aversivo para sua família e seu grupo de amigos. A pessoa que fuma pode perder o afeto do cônjuge se insistir com seu vício. O homossexual pode perder o afeto, o respeito, e ter o afastamento das pessoas que ama se contar sua condição.
Ao fumar, o fumante lembra-se das palavras ditas pelo cônjuge: “Se você morrer de câncer por causa do cigarro eu vou sofrer. Você está acabando com você e comigo também”.
Ao ter uma relação homossexual, o homossexual lembra-se que, se continuar com isso, com certeza terá menos respeito e afeto da família, e imagina cenas de brigas, de humilhação e verbalizações de sua família condenando seu comportamento homossexual.
Esse sentimento misto, de se ter algo de que se gosta, mas isso, ao mesmo tempo, produzir aversividade nos outros (que, por sua vez, nos punem ou retiram nossas recompensas, especialmente as afetivas), é o que chamamos de culpa.
Culpa advém das regras do grupo em que se vive e se valoriza. Se não valorizássemos as outras pessoas de nossas relações, não sentiríamos culpa quando fizéssemos coisas que as levariam a sofrer. Seríamos indiferentes e não sentiríamos a aversividade da culpa.
O problema maior da culpa é a questão de imporem-se sanções AO INDIVÍDUO e não ao comportamento específico que produz alguma conseqüência aversiva para os outros e para si.
A fala da mãe do menino, ao repreendê-lo, foca-se na idéia de que o indivíduo é o responsável pela situação, e não uma de suas muitas ações diárias que pode ser passível de modificação por outros métodos. Daí a culpa estar ligada a pensamentos de autodesvalorização, de menos valia, de irresponsabilidade. Pune-se o indivíduo e não somente a parte de seu comportamento que é problemático; então, ele pensa: “eu valho pouco”.
Modificar essa relação causal entre comportamento inadequado – sanção social, retirada de recompensas, sentimento de culpa e autodesvalorização, não é fácil.
É necessário avaliar quando a culpa é ou não funcional. Sentir-se culpado por ferir seu irmão menor ou algum animal indefeso é socialmente funcional. Sentir-se culpado pelo divórcio dos pais é uma fantasia prejudicial. Sentir-se culpado por algum erro e, então, não cometê-lo novamente é funcional. Sentir-se culpado por não conseguir fazer algo que está além de suas possibilidades é algo prejudicial.
A Terapia Comportamental tem-se mostrado eficaz na diminuição da culpa não funcional, por meio de reformulações de regras, mudanças de atitudes, e valorização do indivíduo, retirando deste a idéia de que suas atitudes errôneas que o fazem sentir-se culpado são como uma doença da qual não consegue livrar-se.
Todos nós dependemos e sempre dependeremos do afeto dado pelo outro. Apenas devemos ter consciência do nosso real valor e de que, algumas vezes, outras pessoas não darão esse afeto de propósito, mas que isso não nos diminui como indivíduos, e que poderemos sempre nos modificar para sermos mais felizes.
Inpa – Instituto de Psicologia Aplicada, Asa Sul, Brasília – DF, Brasil.
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